Resenha: O Erotismo na Música Popular Brasileira (1)

“O que é que a gente pensa tomando vinho tinto? Sacanagem. Sacanagem da boa! Aposto que quando saírem daqui vão fazer sacanagem!”, provocou Cazuza, interpretado pelo Daniel de Oliveira, no filme “Cazuza – o tempo não para”. Sacanagem... Vocês já devem ter percebido que na nossa Música Popular Brasileira há letras com muita sacanagem, com teor erótico, sensual, pra ser mais específico. Mas os nossos compositores sabem como deixar tudo mais delicado, sutil e bonito, sem tirar o conteúdo principal: o sexo. A música brasileira tem facilidade de versificar esse assunto na forma mais romântica, velada e direta, sem papas na língua. Querem uns exemplos?


Gravada em 1981 pela dupla Kleiton e Kledir (composta por Kledir), a música Paixão tem uma letra de caráter não exatamente sexual, mas de sensualidade. O personagem se declara à mulher, por quem tem um intenso desejo carnal, de uma maneira íntima e descreve o que seria a relação sexual deles, desde as preliminares até os momentos mais ardentes. A versão original nos chama para a cena, mas a versão de Fábio Junior, em 2011, tem uma melodia ainda mais lasciva. Os discretos acordes do violão não são nada discretos e te levam àquela lembrança mais quente com aqueeeela pessoa... Cada trecho insinua o quão o homem pode ter lábia (amo a tua voz e a tua cor/ o teu jeito de fazer amor), pode ser safado (de repente a gente rasga a roupa/ é uma febre muito louca/ faz o corpo arrepiar), sincero (depois do terceiro ou quarto copo/ tudo o que vier eu topo/ tudo o que vier/ vem bem), e, claro, romântico:

“Tens um não sei que de paraíso
E o corpo mais preciso
Que o mais lindo dos mortais.
Tens uma beleza infinita
E a boca mais bonita
Que a minha já tocou”.



Já a canção Soneto do teu corpo, gravada por Leoni (composta por ele e Paulo Moska), em 2006, traz uma descrição do erotismo mais implícita, delicadamente disfarçada, modelada por figuras de linguagem. Na letra, o narrador jura beijar o corpo de sua musa sem descanso, mas não é simplesmente beijar – até porque o beijo é uma das demonstrações de afeto mais significativas que existem. É a partir do beijo que ele conhece cada detalhe do corpo da mulher, comparando-o com elementos da natureza, como o sol, a lua, rios, bosques... Os compositores penetraram a sensibilidade e fragilidade no tesão, imprescindíveis em uma relação sexual, em um soneto1
                                "Línguas de lua varrem tua nuca
                                línguas de sol percorrem tuas ruas
                                juro beijar teu corpo sem descanso" 
personifica o refrão. As “ruas” podem ser os braços, pernas ou qualquer outra parte do corpo da pessoa e essas línguas de “lua” ou de “sol” lembram um beijo mais carinhoso ou mais mordaz, ou o que você, leitor e ouvinte, interpretar. Ou seja, no mínimo, o narrador deve cumprir com o que promete. (CLIQUE AQUI E ACOMPANHE A LETRA DESSA CANÇÃO)


O grupo Kid Abelha, em 2005, foi mais objetivo, começando pelo título: Poligamia. Uma canção com esse nome já se entende que o conteúdo não é dos mais sensíveis. Mais animada e dançante, tem um estilo pop; e uma letra que abre espaço para vários temas: a liberdade sexual, igualdade entre os sexos (todo homem merece um arem/ toda mulher também), sexo em local público (escritório, supermercado/ banco de condução/ todo canto é apropriado/ eu nunca digo não), a necessidade de objetos para promover a libido (prazeres já temos de menos/ produtos já temos demais), relacionamento aberto (meus amores não são implicantes com meus outros amantes). Enfim, a música composta por Paula Toller e George Israel nos apresenta um narrador nada careta, nada discreto e totalmente aberto a novas experiências. Por isso, ele convida:

                                  “Vamos ficar, vamos fazer
                                     Vocês e eu, ‘eus’ e 
                                     Vamos gozar, vamos viver
                                    Vocês e eu, ‘eus’ e você”

Quando se fala de música brasileira, é possível produzir a letra do jeito que quiser, com o tema de sua preferência ou inspiração. O erotismo é um dos assuntos mais recorrentes e tem a chance de ser criado das maneiras mais salientes, sutis, românticas e ousadas, porém há um estilo ou outro que trata disso com respeito à música, à poesia e aos nossos ouvidos. Pudemos ver, também, que o período de lançamento ou crianção da canção, dos anos 80 ou 2007, é determinante para apontar mudanças na linguagem e no conteúdo, mesmo porque as gerações mudam, as ideias e a linha poética, consequentemente, mas sem perder a qualidade no resultado final. Porque sacanagem e romantismo faz um bem desgraçado, e se tiver trilha sonora, então... Aí fica foda! 




1Soneto é um pequeno poema composto de catorze versos, divididos em dois quartetos (duas estrofes com quatro versos) e dois tercetos (duas estrofes com três versos)

Comentários

Cris Freitas disse…
Deu até vontade de fazer sacanagem... Kkkkkkkk. Simplesmente adorei, você explica de uma forma tão descontraída e ao mesmo tempo, com riqueza de conteúdo. Eu aprendo muito com seus textos! Agora vou tomar um vinho tinto e escutar uma boa MPB, pra me deliciar nas letras das músicas mais sacanas e românticas... HaHá!
Que passeio sobre o libido e a luxuria.Tão perfeito como as melodias dessas sacanagens.
wolfman disse…
Mano....., essa música "paixão", é tudo de bom, mesmo....., brincadeira de adultos que sabem o que querem. Texto perfeito, falastes com propriedade sem...., parabéns
Gente, fiquei mais impressionado com os comentários da Cris do q com teu texto - cuja qualidade e profundidade na análise estão excelentes, como sempre.
Hahahahaha
Mt bom conhecer pérolas da música brasileira que eu desconhecia, e vc traz à tona para mim.

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