Conto: Eu não merecia isso/ Homenagem

Conto: Eu não merecia isso.

Os tímpanos de Bernardo estavam danificados. Deitado no sofá, com duas almofadas nas orelhas para tentar impedir de ouvir a gritaria que vinha do lado de fora, usava a mesma roupa desde que saiu de casa, antes da primeira notícia do jornal matutino. O apartamento não era muito confortável, nem organizado, mas era onde ele poderia se acomodar. A saudade de casa era imensa, mas não voltaria a morar nela. A maior parte de suas coisas já estava na nova casa. Aquela ainda era a segunda noite como recém-separado de Karina, sua esposa, e ele já não conseguia aguentar.
Esposa não. Ex - esposa.
- ABRE A PORTA, BERNARDO! – Karina gritava, do outro lado, desatinada. – EU SEI QUE VOCÊ ESTÁ AÍ!
Bernardo a ignorava. Seus cabelos encaracolados pingavam de suor, assim como sua camisa social, que de azul claro mudou para azul escuro. Todo o cansaço se devia a sua fuga. Ele dirigia aceleradamente até o prédio onde estava morando para que Karina não o alcançasse. Estacionou na pressa, quase arranhando o carro em uma das colunas, utilizou a escada para chegar antes dela, já que o elevador não estava parado na garagem, e, por pouco, não foi pego. Trancou a porta e no exato segundo Karina chegou, batendo descontroladamente. Talvez nem ela soubesse da sua própria força e de sua voz. Era um milagre nenhum vizinho ainda não ter aparecido para reclamar da barulheira. No dia anterior, uma senhora bem velhinha recebeu Bernardo com polidez e o desejou boas vindas. Não queria ser taxado como vizinho desordeiro por causa de sua ex-mulher. E preocupado em manter uma boa convivência, Bernardo se levantou para abrir a porta, embora ele não quisesse vê-la nem que ela entrasse nua em seu apartamento.
- BERNARDO, EU VOU QUEBRAR ESSA PORTA! ABRE LOGO!
O desespero tomou lugar ao choro. Bernardo achou aquela encenação hipócrita. Abriu a porta para que Karine não o aborrecesse com mais mentiras e para evitar que algum vizinho o expulsasse.
- Bernar...

Karina tentou abraçá-lo, mas Bernardo a afastou como se ela tivesse ensopada de lama. Fechou a porta e perguntou, enervado:
- Dá pra você parar com tanto fingimento, Karina?! E pra parar de gritar?! Desse jeito vão me expulsar daqui!
- Mas você não vai morar aqui. Você vai voltar pra casa! – disse, ensandecida. - Eu não tô fingindo, Bernardo. Deixa de ser insensível! – Karina secava as lágrimas falsas que caíam dos seus olhos fundos. Seus cabelos curtos nunca tiveram tão bagunçados. Ela correra para alcançá-lo, estava exausta, mas não sairia enquanto não inventasse desculpas esfarrapadas para convencer Bernardo. Mas ele não seria idiota. Não mais.
Karina tentou abraçá-lo mais uma vez, porém nem seu corpo sarado que tanto o excitava foi o suficiente para aceitar o abraço. Quando eles se conheceram Karina tinha um corpo gorducho, mas mesmo que Bernardo dissesse que era assim que ele gostava dela o desejo de emagrecer era maior. A dieta e os exercícios físicos modelaram sua esposa e ficou ainda mais doido por ela. Mas vieram as novas amizades. Bernardo era homem, daqueles que aproveitaram sua solteirice e conhecia essa raça. Sabia quando um outro homem tinha segundas intenções com outra mulher e quando pretendia uma simples amizade. Um homem com pinta de safado, que frequentava academia para ficar com um corpo atlético e paquerar mulheres casadas surgiu na vida deles. Brandão. Bernardo sabia. O cara flertava sua mulher e ela não atentava para isso.
Os avisos de Bernardo foram jogados por debaixo do tapete. Karina e ele brigaram devido a desconfiança dele, mas logo fizeram as pazes. Bernardo tentou acreditar ou fingir que acreditava em Brandão. Até que ele soube por Dulce, sua melhor amiga, de quem Karina morria de ciúmes, que sua esposa e o amigo de academia o colocaram um par de chifres, num motel distante da cidade. Ele nem quis saber como Dulce descobriu. Era verdade. Acreditava nela. Dois anos de casamento destroçados.
- Karina... – Bernardo, impaciente. – Vá embora daqui. Não quero te ver, não quero falar com você.
- Amor...
- Não me chama de amor. – com frieza.
- Só me ouve... – Karina tocava no rosto moreno de Bernardo, duro de raiva, tentando acarinhá-lo, mas ele se afastava. – A Dulce... Ela... Ela te contou porque queria acabar com o nosso casamento...
- Não. Ela me contou porque não gosta que me façam de otário. E era o que você estava fazendo, Karina. E você sabe disso.
Karina fingia que não ouvia.
- Bernardo... Amor...
- Não me chama de amor!
- Tá... – ela se desequilibrava. – Bernardo, o que aconteceu entre mim e o Brandão não foi nada. Foi...
- Vocês foram pra um motel, Karina! Você me confirmou depois!
- Sim, mas a gente...
- “Mas a gente” o quê?! Vai dizer que vocês dois foram bater papo no motel?! Ah, Karina, o que você fez foi a maior burrice! Destruiu os nossos planos. Nós íamos viajar, ter filhos, íamos nos mudar pra uma casa maior. Íamos fazer tanta coisa juntos, mas você preferiu jogar dois anos de casamento e mais cinco de namoro fora numa cama de motel com um musculoso de academia! – disparou, e se sentou no sofá, amargurado.
- Mas nós vamos fazer isso tudo, claro que... – Karina o levantou e o abraçou, mas Bernardo a empurrou para longe, quase a jogando no chão. Se arrependeu, e a ajudou a levantar. Não era um homem violento, jamais foi. Karina que o estava tirando do sério.
- Desculpa, mas você me deixa puto da vida, Karina!
- Puto da vida? Foi só uma vez, uma única vez. Foi um erro, um erro. Eu sei. Não vai mais acontecer.
- Mas aconteceu. E acho até que você se encontrou com esse tal de Brandão nesse carnaval. Aliás, naquele domingo de carnaval que eu não fui...
- Ah, por favor, Bernardo! Para com isso!
- Nunca se sabe...
- Essa sua desconfiança é tudo culpa da sua amiguinha! – acusou Karina, com desprezo. Bernardo não se surpreendeu com a acusação de sua ex. Dulce seria um nome que Karina não daria sossego. Durante os dois anos de casados, ela tolerava a amiga de Bernardo. Ciúme corrosivo.
- Não ponha culpa na Dulce! Ela foi sincera comigo. Ela soube e me contou logo. Mas você... – Bernardo passava as mãos nos seus cabelos cacheados, bagunçando-os e deixando escorrer gotas de suor na testa. – O que você fez foi inaceitável, foi traição. Foi desumano... Não, não. Foi mais que desumano. – Bernardo não limitava os insultos. - Eu nunca esperei isso de você, Karina. Nunca.
- Bernardo... O nosso casamento era tão lindo. A gente se amava tanto. Oh... A gente pode começar do zero.
- Nós vamos começar do zero. Mas separados. – com os braços cruzados.
- Não... Separados, não. – Karina dava voltas na sala, alterada. Novamente, ela segurou as mãos do ex, e ele a soltou. Ela tocou nos cabelos cacheados dele, afagados pelas mãos dela por tanto tempo. Bernardo recebia muitos cafunés e era gostoso de sentir as mãos delicadas de Karina nos seus cabelos de anjo. Mas todas as lembranças correram num doloroso segundo. Bernardo a queria distante. Ele seria mais forte que a saudade que já estava sentindo, nem que agisse com grosseria.
- Vá embora daqui, Karina. E por favor, me esquece. – desvencilhando-se dela. - Não. Ainda vou chamar um advogado e vamos nos divorciar, mas depois... Te quero longe de mim. Longe!
Bernardo foi até a porta e a abriu.
- Vá. Saia.
- Não...
- Saia e some. Aliás, acho que nem divórcio vai ter, por enquanto. Não aguento nem olhar pra sua cara. Não quero nada que venha de você. Fique com tudo e fique longe de mim!
- Você me ama ainda, Bernardo. Você não vai conseguir...
- Não vou conseguir o quê? Deixar de te amar? Olha, Karina, eu te amei sim. Fui sincero com você, te quis de verdade, mas você não. Foi uma tremenda de uma...
- Cuidado com o que você vai falar. – Karina advertiu, chorosa. Bernardo concordou, mas não se calou.
- Eu não mereci o que você fez comigo. Não mereci. Ninguém merece ser traído. Não interessa o motivo, não interessa com quem, não interessa se foi só uma vez, se não foi por amor, se não vai mais se repetir, se houve arrependimento. Não interessa. Houve traição. E quem trai não merece confiança de ninguém. Quem trai, não ama.
Karina voltou ao choro. Uma senhora idosa abriu a porta ao lado e olhou furtivamente.
- Mas eu fui sincera com você. Eu contei a verdade.
- Ah, você acha que merece um prêmio da esposa mais sincera? Não merece.
- Bernardo...
Era a mesma senhora que o recebeu educadamente quando se mudou. Ela os olhou, assustada, e fechou a porta.
- Agora vá e suma, Karina. Passe bem, seja feliz, mas longe de mim.
- Eu não vou te esquecer, eu te amo...
- Mas eu vou te esquecer. Vou esquecer seu nome, seu número de telefone eu vou apagar... E vou mudar o meu também, mas te tiro da minha vida.
- Já sei por que você tá fazendo isso comigo. Você quer ficar com a sua amiguinha. – deduziu erroneamente.
- Não ponha a Dulce nessa história. – Bernardo exigiu, irritado. Sabia que Karina voltaria a implicar com Dulce outra vez. Bernardo, no entanto, a defenderia.
- Vocês dois já tiveram um casinho antes de a gente se conhecer, Bernardo. E você vai correr pra ela e...
- Se você não sumir agora, você terá um inimigo para o resto da vida, Karina. – Bernardo sabia de sua rigidez e, talvez, um pouco de exagero. Contudo estava quase impossível de controlar a raiva. Karina secou as lágrimas que ainda caíam, amarrou a cara e disse, titubeando:
- Se você quer que eu vá... Mas, Bernardo...
A paciência de Bernardo se derramava como as lágrimas que escorriam no rosto de Karina.
- Você tem certeza que quer por um fim no nosso casamento? E se o fim não for necessário? E se ele for o gatilho que nos motiva a continuar? Acho que o fim, na verdade, é uma grande mentira, pois nada termina por completo. [1]
- Mas o nosso casamento, sim. Você prometeu ser fiel. E não foi.
- Mas, Bernardo, acabar um casamento é algo...
- Vá embora, Karina!

Karina virou as costas e desceu de escadas. A porta de saída fez um tremendo barulho. A vizinha abriu a porta e perguntou se estava tudo bem. Bernardo aquiesceu e entrou. Desabotoou e tirou a camisa, e se jogou no sofá, mais uma vez. Arrasado. Abatido. Expulsar sua ex-esposa, ainda que ela merecesse, doeu. A raiva que sentia por ela se tornou maior que o amor. 
 A carência chegou na vida de Bernardo. Ele, então, lembrou do que Karina falou e teve que admitir: sua ex tinha razão em uma coisa.

Tirou o celular do bolso da calça, acomodou-se e procurou o “Favoritos”. Encontrou o nome e discou. Ela atendeu de imediato.
- Oi, Bê!
- Oi, Dulce...
- Tá tudo bem? Acho que não. Tô notando pela sua voz...
- Você, como sempre, acertou. – respondeu, consternado. – Tô precisando de colo.
- Oh, tadinho. Posso ir aí com você? Você tá no seu apartamento novo, né?
- Tô sim. – e acrescentou intencionalmente: - E sozinho.
- Posso passar a noite aí se você quiser...
- Faça isso, por favor.
- Tudo bem, vou tomar um banho e em meia hora eu chego aí. – era tudo o que ele queria ouvir de sua voz tão doce. Doce. Combinava até com seu nome.
Dulce desligou. Bernardo foi traído pela mulher, foi morar sozinho em outro apartamento, expulsou-a de sua vida e agora se sentia triste e agarrado na carência. Mas ele não ficaria sozinho. A noite de Bernardo, no fim, não iria acabar tão ruim assim. Ele iria ter alguém pra consolá-lo. E Dulce sabia dar o consolo que ele estava precisando.

Oh, se sabia...  



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[1] OLIVEIRA, Ana Beatriz. 2016.
O texto na íntegra será postado no blog em breve.
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     Sim, o conto acima foi inspirado na canção “Eu não merecia isso”, composta por Filipe Escandurras e interpretada por Luan Santana. Além de eu realmente gostar dessa música, também é uma maneira de homenagear a aniversariante. Ela me ensinou a gostar de Luan Santana, One Direction, Pretty Little Liars e Bates Motel. A aniversariante de hoje sabe ser meiga, carinhosa, mas também fica emburrada e mal humorada. Ela sonha em conhecer Cancún, é quase tão esfomeada quanto eu; se pudesse comeria sushi todo fim de semana e é louca por um funk e axé. E também por youtubers – no instante em que eu escrevia esse texto, ela me chamou, rindo que nem uma lesa, pra eu ver com ela um trecho de um vídeo do Christian Figueiredo com a Maisa. Ela é louca pelos dois.
Como muita gente já deve saber, eu pedi uma irmãzinha aos meus pais ; e eles, como nunca me negaram nada, produziram a Ivna. - só acho meio injusto porque ela é linda e eu nem tanto, mas tudo bem. O meu cabelo é liso (também), e isso já é o basante. - Hoje, eu tenho a companhia dela para festas, aniversários, cinema, shows, assistir séries... Nem sempre eu tô muito no pique e ela também nem sempre está muito paciente. Porém, há algo que ela sabe, vive dizendo e dou razão a ela: a minha vida sem a Ivna seria muito sem graça. Não teria o mesmo sabor, a mesma alegria e eu não saberia como é divertido ter uma irmã. Ter a Ivna como irmã é misturar as cores, confundi-las, porém sem jamais escurecer o papel. É rir, se estressar, falar bobagens, zoar, se aborrecer, curtir, mas nunca se desentender. É ouvir bronca da mamãe, um tentar defender o outro e zoar com a cara dela - a mamãe sofre, coitada. - É saber que as canções em inglês serão assassinadas todos os dias, porque ela maltrata a língua e nossos ouvidos. É saber que se você pedir pra ela por o açaí na jarra, ele vai derramar, e o arroz vai queimar nas primeiras tentativas - mas ela aprendeu a fazer e tá bem gostoso. - Ter a Ivna como irmã é saber que uma das melhores coisas que eu fiz foi pedir a companhia de uma irmã.
E o dia de hoje, 16/02, é quando Ivna comemora seus 19 anos de dúvidas, farras, brincadeiras, abraços, choros, broncas, cócegas, dramas, babados e muita encheção de saco. É dia de comemorar a vida, porque Ivna é um dos pedaços mais bonitos que compõem meu coração. Portanto, minha mana´deu, parabéns! Que o tempo te traga uma vida festiva, com gás, saúde, determinação e que cada dia de alegria e de tristeza te faça crescer, aprender e ser feliz. Seja feliz. Tu sendo feliz, eu também fico! Porque uma das minhas maiores felicidades é te ter por perto. 

                  O mano te ama!
Feliz aniversário!

Comentários

A pequena Ivna é um presente não apenas na sua vida, mas tbm na vida de todas as pessoas que tem a sorte de conhecê-la e ver o brilho em seu olhar.
Não há Victor sem Ivna, assim como não há dia sem noite.
:)

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