Conto: A Praia das Luzes


Conto: A Praia das Luzes
(revisão textual  - Marina Beatrice) 


Conto: A Praia das Luzes
(revisão textual - Marina Beatrice) 

         
O café fervente rasgava a garganta de Núbia. Ardia na língua, provocando uma dor aconchegante quando tocava no céu da boca. Cada gota espumava no organismo e provocava uma sensação de vivacidade. Núbia gostava de café forte, que ardesse nos lábios e nos olhos. A fumaça da bebida a lembrava da fumaça dos cigarros que tragava quando não havia ninguém por perto. A melhor hora do dia era quando sua mãe, seu irmão e a empregada não estavam em casa e ela ficava no quintal, sozinha, fumando pelo menos uns cinco cigarros. E tudo que ela queria naquela noite era ficar só, com ou sem um fumo. Se pudesse, pediria a solidão como presente de aniversário.
Os seus dezoito anos estavam sendo celebrados na casa que ficava em frente à Praia das Luzes da cidade de João Dourado, casa que foi herança de Fausto, o avô materno de Núbia. Uma das heranças. Sua mãe, Olinda, ficou responsável para administrar a rede de perfumarias Aromas depois da morte de Fausto. No entanto, o recente divórcio a estava prejudicando na administração empresarial e emocional. Souza, seu ex-marido e pai de Núbia e de Helder, perseguia-a por onde quer que fosse. A única saída que Olinda encontrou para ficar longe dele foi se deslocando com os filhos para a casa em João Dourado, fora da cidade de Cornetas. Souza não se atreveria a invadir a casa onde seus ex-cunhados estavam. Eles eram as pouquíssimas pessoas que o intimidavam. Helder e Núbia também preferiam ficar distantes do pai. Ver a mãe insegura ou amedrontada era um castigo para Helder. Núbia, contudo, queria o pai e qualquer outra pessoa da família longe dali.
Como as suas únicas duas amigas não moravam em João Dourado e não puderam viajar para acompanhá-la, Núbia se sentia mais sozinha do que de costume no seu aniversário. O seu quarto era seu porto seguro. Os seus cabelos estavam sujos e despenteados. Havia pintado de roxo, mas já estavam perdendo a cor. Quando descobriu que a filha pintou o cabelo, Souza se descontrolou e deu uma surra na garota. Ela ainda sentia o cinturão nos seus braços. Porém, nada foi pior do que a vez em que ele a viu com o piercing na orelha pela primeira vez. Tentou tirar à força e, como não conseguiu, jogou-a no chão e a encheu de palmadas com o chinelo. As suas colegas de classe presenciaram tudo e nunca mais voltaram na casa dela. Núbia tinha ódio do pai e também não tinha muito apreço pela mãe. Dinheiro, mimo e conforto eram as armas que Olinda usava para fingir que cuidava da filha. Devido a esse desprezo, Núbia gostava mais da mãe quando ela estava longe. Enfrentá-los a acalmava.
A casa em João Dourado estava barulhenta, com primos e tios falando mal dos familiares ausentes, comendo e bebendo por todos os cômodos. Helder pediu para que Núbia fosse à sala porque os parentes queriam cumprimentá-la. Seu irmão, dois anos mais velho que ela, era gentil demais para dizer a verdade: ele não gostava de vê-la sozinha. Nenhum tio ou primo sequer foi deseja-la um feliz aniversário. Núbia não sentia falta, sabia que seria bombardeada de comentários como “Você não tá muito gorda?”, “Esse cabelo roxo não fica bem em você” ou “É verdade que você está repetindo o segundo ano, prima?”. Núbia preferia evitar, principalmente os venenos sobre sua gordura. As suas melhores roupas já não cabiam, os sofás sentiam o peso do seu corpo e sua própria mãe demonstrava vergonha quando estava ao lado da filha. Às vezes, a garota de cabelo roxo nem estava com muita fome, mas comia desesperadamente para engordar. Obesa, provocaria e envergonharia os pais, os amigos e estava tudo bem.
Da janela do seu quarto, Núbia contemplava a Praia das Luzes. Naquele horário, quase dez da noite de uma quinta-feira, não havia quase movimentação nas calçadas ou na areia. Apenas um jovem magrelo sentado na areia da praia, tocando violão e tomando alguma bebida numa garrafa. O vento atacava sem piedade. O rapaz ali era muito corajoso: estava sem camisa e, supostamente, não se incomodava com o frio. Núbia se sentia em paz quando estava na praia. Sentir a areia brincando com seus pés e a água os banhando, o sol, a luz do luar a protegendo do resto do mundo... Ela fechava seus olhos, soltava seus cabelos coloridos e aproveitava a melhor das sensações. Era o momento que não levava desaforo ou surra do pai, não sentia o olhar de pena de seu irmão e nem o desprezo de sua mãe. Ainda assim, alguns minutos de uma solidão de mentira, porque ninguém fica solitário quando se está na companhia do sol, da água, da areia... Havia tempo que não tomava um banho nas águas da Praia Das Luzes. Desde pequena ela ouvia boatos que essas águas eram perigosas e por isso, quando garotinha, e até mesmo depois de crescida, sua mãe ordenava que a babá só desse banhos curtos, sempre no raso, ou que nunca fosse para o fundo sem a presença de alguém mais velho. Lembrando-se de tudo isso, Núbia sentiu vontade de tomar um banho nas águas da Praia das Luzes.
Com seus chinelos gastos, uma bermuda folgada e a blusa velha que vestia, Núbia deixou o som ligado no volume máximo e saiu cautelosamente do seu quarto. Do corredor à sala, nem mesmo seu irmão percebeu que ela estava por perto. Ouviu um “cabelo esquisito” em uma vez masculina, algumas risadas escandalosas e forçadas que abafavam qualquer outro som. Com as mãos na porta da sala, Núbia ouviu de sua mãe: “Pode cortar. Ela não vai se importar”. Ela deveria estar se referindo ao bolo. Um aniversário sem “parabéns a você” com a aniversariante presente no local. Embora ela não quisesse a festa, aquilo foi o estopim para sair de casa. Sem mais nenhuma cautela, bateu a porta e saiu.
Núbia desceu os poucos degraus da escada de madeira, ficou em frente à casa e pousou os olhos nela. De baixo, dava para ouvir a música alta e até algumas risadas. Seus familiares não eram nada discretos. Ela, como aniversariante, era a pessoa menos importante na festa. Olinda mandou preparar os doces, salgados, bebidas e comidas, chamou os membros de sua família, escolheu a roupa que Núbia iria usar (que vestiu, mas retirou em menos de trinta minutos), organizou tudo... Só se esqueceu de perguntar se a filha gostaria de comemorar. Ter ignorado Souza e não convidá-lo foi o único acerto. O pai não compareceu e tampouco ligou ou mandou mensagem parabenizando a garota. Se ele tivesse lembrado, sim, teria sido estranho.
A rua não recebia quase nenhum pedestre, ciclista ou motorista. O céu ganhava de presente algumas luzes estrelares e uma lua tímida para clarear a cidade de João Dourado. Núbia a atravessou sem olhar para os lados. O vento debatia os cabelos sem brilho dela e forçava o frio a ser parceiro noturno da Praia das Luzes. O som do violão e da voz largada do rapaz na areia da praia voltou a ser percebido por Núbia. Uma garrafa de vinho quase vazia ao lado e, ainda bem perto, ela pôde ver alguns toquinhos de cigarro. O magricelo de coluna torta, cabelos longos e mais descuidados que os da aniversariante começou a tocar uma canção que ela ouvia nos bares ao redor de sua casa em Cornetas.

Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando...

Núbia andava em direção à água, com o olhar centrado nas ondas. Ao notar a presença dela, o músico parou de tocar e perguntou, com a voz meio apalermada:
- Oi, garota. Não tá a fim de ouvir um sonzinho, não?
Com os olhos banhados no mar, sem virar o rosto, Núbia respondeu com frieza:
- Não.
- Você poderia fumar um...
- Não.
- Falou, então... – Núbia ouviu o músico se conformar. – Aê, você vai entrar na água?
- Vou sim. – ela se virou para encará-lo. – Posso te pedir um favor?
- Pode sim, moça.
- Você pode continuar de costas e continuar tocando essa música pra mim? – obrigando-se a ser educada.
- Posso... – concordou, achando o pedindo indizível. – Mas tenha cuidado se você for entrar na água. As ondas estão violentas hoje. Aliás, estão sempre.
Núbia virou o rosto novamente para o mar e mandou:
- Que venham as ondas.
- Não fale assim. Elas levam a sério.
- Mais uma coisa pra te pedir. – Núbia deu uma risada de escárnio ao pensar no que iria dizer. – Não acho que isso vá acontecer, mas se alguém vier perguntar por mim, diga que nunca me viu. – e enfatizou: - Por favor.
- Vou dizer que você foi para os braços do mar. – brincou, dedilhando de olhos fechados.
- Diga isso. – concordou, com o pensamento longe.
Os acordes do violão iniciaram quando Núbia largou seus chinelos. Seus pés tocaram com firmeza a areia fria. Os dedos se afundaram nos grãos e pedrinhas da praia.

Às vezes você me pergunta por que é que eu tô tão calado.

Mais alguns passos à frente, Núbia tirou a bermuda e a deixou na areia. Quando sentiu a água morder seus pés, tirou sua blusa e a jogou para o lado.

Não falo de amor quase nada, nem fico sorrindo ao teu lado.

O frio se enrolou no corpo de Núbia. Sua cintura rechonchuda, seios flácidos e as mãos fofas foram abraçadas pela corrente de vento. O frio ou o calor, para a aniversariante não fazia muita diferença. Se ficava suada, se os pelinhos do seu corpo se arrepiavam, não importava. Seu corpo estava preparado para o que viesse. E as ondas do mar chamando, gritando por ela.

Você pensa em mim toda hora. Me come, me cospe, me beija”

As águas finalmente puxaram Núbia pelas pernas. Os passos eram mais fracos. Os braços do mar a levavam sem nenhum sacrifício. Núbia já quase não ouvia o som da canção. Os jatos de água a tapeavam no corpo todo, limpando os temores mais ácidos e corrosivos da sua pele. Ela mergulhou de olhos fechados. A escuridão do mar era mais clara do que seus sonhos. Foi abraçada, sufocada e torturada. No entanto foi uma dor que ela escolheu sentir. Era nessa escuridão que ela se eternizaria. Núbia e as águas do mar da Praia das Luzes se tornaram um só.

Eu sou a luz das estrelas

Os pés de Núbia já não sentiam a areia. As ondas vinham para sufocar o mundo de quem tentava invadi-la. As narinas dela já não tinham controle de si. Núbia poderia nadar, mas deixou ser arrastada pela correnteza. Ela não mexia os pés e nem os braços. Se jogou no mar de olhos cortados, fechados. Se entregou ao mar. Conseguia ouvir os desaforos de sua mãe, as surras de seu pai e o distanciamento do irmão. O dó das amigas. A falsidade dos familiares. Tudo aquilo era uma ilusão. Não ouvia nada. Ouvia só o mar. Sentia somente o mar. As águas que entravam pelo seu nariz, suas orelhas e sua boca. Núbia foi invadida pelas águas. E as águas invadiram e afogaram sua vida.

Eu sou, eu fui, eu vou.


O músico, com a mente apaziguada pelo álcool e pelo fumo, de olhos fechados, hipnotizado pela canção, cantou-a até o fim. Esqueceu-se da moça de cabeço roxo. Ao finalizar o último acorde, ele se virou para vê-la tomando banho. Mas ela havia sumido. Preocupado, deixou o violão com um casal de namorados que havia acabado de se sentar ao lado dele e correu para o mar. Saiu gritando “Moça!”, porém ninguém respondeu. Nadou pouco, porque sabia que as ondas eram violentas, impiedosas. Apenas quando voltou para a areia que viu os chinelos e as roupas dela. Ele não precisou pensar muito para concluir o que aconteceu. Segurou, então, os pertences da garota, voltou ao mar e lá os lançou. Devia ser como ela gostaria que acontecesse. Ao sair do mar, pensativo e ensopado, voltou para pegar seu violão com o casal de namorados. A tontura causada pelo álcool havia desaparecido junto com a garota de cabelo roxo.
O casal de namorados, que tentava inutilmente dedilhar o violão, entregou o instrumento ao músico quando ele se sentou e a moça perguntou:
- Está tudo bem? A gente ouviu você gritar por uma garota.
- Sim. – respondeu - Ah, você pode continuar segurando o violão? Não quero molhá-lo. – e a moça o colocou no seu colo. – E sim. Uma garota de cabelos roxos apareceu aqui e... – com o pensamento vago, continuou a resposta: - Entrou no mar... Na verdade... Quase ninguém vem aqui pela Praia das Luzes depois das nove da noite. Deve ter sido efeito do álcool e do fumo. Imaginei coisas. – concluiu o rapaz, não sabendo se acreditava ou não na sua própria história. E a moça que pensou ter visto pediu segredo a ele. Imaginação sua ou não, segredo era segredo. Só não queria mais falar sobre o assunto.
- Imaginou coisas? – perguntou o namorado da moça.
- É. Ou vai ver foi o cigarrinho forte que eu fumei agora há pouco, tá ligado?
Os dois riram e o rapaz tirou um maço de cigarro do bolso. Cada um dos três teve um cigarro aceso e tragado. A fumaça que saia da boca deles se perdeu na noite. O músico queria sentir o brisa do fumo desanuviá-lo de novo. Deslizar os pés nas nuvens. E quando ele daria uma nova tragada, um rapaz surgiu correndo esbaforido na praia, na direção dos três.
- Por acaso vocês viram uma garota gordinha, com um piercing na orelha e de cabelos roxos por aqui? – inquiriu, ofegante.
O casal respondeu que não.
- Ela é minha irmã. – disse o garoto, preocupado. – Ela saiu de casa sem ninguém perceber. Você não a viu? – ele perguntou ao músico. Depois de outra tragada, com o rosto em direção ao mar e com os olhos fechados, respondeu, sendo ainda mais fiel à moça que ele pensou ter visto:
- Foi para os braços do mar.
- Ham? Como assim? Você a viu? Você a viu?
- Garoto, sente aqui, ouça uma canção que eu vou tocar quando estiver menos molhado e sujo de terra, fume um cigarro, que você ganha mais. – convidou o músico, espremendo os cabelos longos para que secassem com mais facilidade.
- Mas a minha irmã...

- Eu fumei muita maconha hoje, meu parceiro. Não sei se vi ou não uma moça gordinha de cabelos roxos. Mas se era mesmo ela, foi para os braços do mar. É o que eu tenho a dizer. Mas não se preocupe com ela.
- Por que não? Ela é minha irmã. Tenho que me preocupar!
- Ela é sua irmã, mas ela deve tá melhor assim, ou não teria vindo para essa praia. E porque... – ele apagou o toco de cigarro na areia, soltando mais fumaça pela boca. Sentindo o vento bagunçar seus cabelos molhados, com o mar nos olhos, respondeu: - Porque quando se é levado pelos braços do mar não se volta mais. Será abraçado para sempre. 


               


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Comentários

Há uma antiga música brasileira (provavelmente baiana) que diz
"(...)a onda do mar leva,
a onda do mar traz.
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais."

Conto curto, porém contundente e completo em si.
Muitas vezes, a única solução visível para quem está num problema é entregar-se totalmente sem pensar em mais nada. Triste, mas real.

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